Eu vou cantar, só que eu vou cantar hoje.
Vou cantar hoje a canção mais antiga que eu conheço, que fala da saudade de um lampião de gás que se apagou. Essa eu vou cantar hoje.
Eu vou cantar hoje desde manhãzinha a ave-maria que eu prometi no seu casamento,
porque ao meio-dia a nossa voz ficará mais afinada, às três da tarde a noiva não veio e ao pôr-do-sol você já se foi.
Eu vou cantar a ovelha negra mas também cantarei atrasado, ela também não é mais a garotinha que espera o ônibus da escola, o ônibus dela passou, ela embarcou porque era malandra, voou dolorida olhando por uma janela, e também sumiu.
Eu vou cantar hoje mesmo a cajuína.
Escuta, Maria Maria, eu vou cantar exagerado hoje, porque entre nós ainda que a sua música também seja um eco baixinho você ainda dança. Cajuína cristalina, tá bom, eu vou cantar hoje, mas a que será que se destina, afinal? Canta e dança com a força da mulher do fim do mundo, dança sentada com os dedos em V e se levanta para continuar cantando e dançando.
Eu vou cantar hoje porque tudo muda nesta volta, amado, amigo, irmão, de repente você também já não pode mais cantar para o mundo que não se arrepende de nada, nem dar graças à vida como antes.
Eu vou cantar hoje, porque quero dançar e cantar com vocês.
Então eu vou cantar hoje, mas não apenas à luz eterna de lampiões de gás se apagando, porque não vivo entre moribundos que vivem se despedindo, porque sei que não danço e canto como um louco em um mundo condenado, estou feliz porque vocês cantam e dançam e vivem comigo, então hoje eu vou cantar também no futuro.
E vou cantar hoje para vocês que como eu acabaram de nascer e sempre existiram, vou cantar porque estou alegre com a coincidência fortuita, porque vocês que como tudo que existe vivem ontem, hoje e amanhã e são o meu presente, e apenas durante esse breve instante podem cantar e dançar comigo. Então desculpem amigos, mas eu vou cantar, e eu vou cantar hoje. Eu vou cantar hoje. Eu vou cantar hoje.
Me desculpe se eu estragar o seu lamento sertanejo, meu amigo, eu te amo mas você sabe que eu preciso cantar hoje, mesmo que você fique triste e ainda que não chore, eu preciso cantar com você e eu preciso cantar hoje, mesmo que seja amanhã, eu vou cantar hoje.
Eu preciso cantar sobre esse destino de sonho e pó para a dona de muitas canções, eu quero cantar mas eu não quero que seja um hino de despedida, quero que seja uma celebração da canção da vida e de uma força incontrolável, então eu canto hoje.
A flôr de mandacaru, pra você eu tenho que cantar hoje. Só hoje eu posso cantar com a voz que era da amplidão, do universo, da multidão, só hoje essa voz pode cantar também só por você, então eu vou cantar hoje. Para você, dona da minha cabeça, eu preciso cantar hoje.
Olha, eu estou cantando hoje, dona da minha cabeça. Cante e dance comigo mesmo que você desafine e eu pise nos seus pés, brilhe nos céus da cidade até depois de amanhã de manhã. Eu vou cantar hoje, neguinha, mas eu preciso cantar as manhas e manhãs, massas e maçãs e as tardes também nessa noite mesmo que a gente soluce e chore, eu vou cantar hoje essa também, porque eu tenho você para cantar, dançar e chorar comigo.
Mais que tudo eu preciso cantar hoje, eu quero cantar hoje, eu vou cantar hoje porque as músicas da inspiração doce e azeda para continuar cantando não foram compostas ainda, eu tenho que cantar hoje para que ela possa cantar comigo e continue cantando amanhã, quando a minha voz for um eco também.
Então, amigas e amigos, desculpem se eu recuso o compromisso de cantar cada vez mais sozinho em velórios. Eu quero cantar hoje e eu quero cantar amanhã, eu quero cantar em grandes festas em que eu possa ver vocês cantando e dançando suas próprias canções.
Mas mesmo que a última em vez que eu canto seja hoje, e mesmo que eu saia do tom, mesmo que eu perca o compasso e que eu fuja da marcação, mesmo que a voz embargue e mesmo que a gente erre nas viradas. O semba do giro do mundo eu vou cantar e dançar hoje.









