O Pilão na terra: Sustança, crescimento e vida

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O Pilão na terra: Sustança, crescimento e vida

Neste texto eu me apresento, conto a história de uma velhinha muito importante para mim e apresento o Pilão de Ideias, o blog do Quilombo Ciência.

Conversas para se pôr farinha.

Minha bisavó materna usava muitas expressões para falar com a gente que eram dos seus próprios lugares e do seu próprio tempo, e que eu e algumas outras pessoas da família aprendemos e usamos até hoje. Tornaram-se parte dos nossos lugares e tempos também, da nossa linguagem para entender e falar sobre o mundo. Ela também usava muitos ditados e contava muitas histórias. A maioria delas era apavorante e trágica, mas ela também sabia corruptelas de quadrinhas das histórias do Pedro Malazarte decor, e usava umas e outras para ensinar as coisas que sabia.
Uma das expressões que me lembro de ouvi-la usar era que não se deveria pôr farinha em algumas conversas. Mais particularmente, me lembro de ouvi-la dizer que “não se põe farinha em conversa de criança”. Isso com certeza expressava um sentimento próprio de boa parte das pessoas da sua geração nos interiores do Brasil em relação às crianças e às suas conversas, mas voltaremos a esse problema depois, por hora é essa história de pôr farinha em conversas que nos interessa, ao menos para os propósitos desse texto.
Para Dona Natividade talvez essa fosse uma medida da qualidade das conversas, uma medida da qualidade das ideias. Algumas mereceriam que se colocasse esforço nelas para discutir e entender, e outras talvez ela considerasse ralas demais, não adiantaria engrossar, não tinham sustança.
Essa era uma dessas expressões que ela usava, cozinhava muito e muito bem e se preocupava que a comida tivesse essa propriedade, o que quer que isso significasse para ela, a comida boa era a que tivesse sustança. Me lembro de outra palavra que ela usava: Conjuminar. Essa eu só sabia ter ouvido dela e de mais ninguém, nem lido em nenhum outro lugar até dia desses.
Usei essa palavra vez ou outra para dizer se uma coisa como uma cor, uma roupa ou uma ideia combinava ou não com outra, como eu me lembro de vê-la usando, eu falava às vezes como uma brincadeira, uma curiosidade que quem conheceu a bisa lembra e reconhece e quem não conheceu estranha. Recentemente eu fiquei mais curioso também, fui procurar no dicionário, e estava lá. Olhei em outros dicionários e as definições eram bem parecidas: Juntar ou unir coisas diferentes. Um dos dicionários dizia que era uma expressão brasileira informal, provavelmente uma alteração de “congeminar”, e claro que eu fui ver o que essa outra palavra significava para as pessoas também, era uma palavra portuguesa. 1. Pensar muito sobre um assunto (ex.: congeminou uma teoria; congeminou na ideia; passou a tarde a congeminar). = CISMAR, MEDITAR 2. Representar no espírito ou na imaginação.
Então talvez além de poder me dizer que a anágua dela não conjuminava com a combinação e que meu cabelo não conjuminava comigo ela também tivesse algum senso desse significado da palavra, sobre conjuminar ideias, assim como conhecia as antigas historinhas do viajante astuto e inescrupuloso Pedro Malazarte. Elas foram muito populares em Portugal e na Espanha e se espalharam no Brasil durante a colonização, ficando mais populares ainda depois de o Pedro virar um personagem de chanchada do Mazzaropi no cinema. As coisas mudam no tempo, as quadrinhas portuguesas que ela conhecia eram corruptelas das antigas.
Corruptela… Não sei se você também é uma pessoa curiosa sobre as palavras, mas talvez eu use mesmo algumas aqui que algumas pessoas não conheçam, talvez as pessoas mais jovens porque são palavras cujo uso se tornou menos comum com o tempo, talvez outras com a minha idade ou mais velhas porque algumas dessas palavras nunca foram tão comuns assim.
Não vou ficar explicando o significado de todas as palavras esquisitas para você, mas te prometo que não é por pedantismo que eu uso, é porque à medida que eu penso e escrevo, que eu conjumino as palavras e as ideias, elas vão se candidatando e eu escolho as mais completas, as mais precisas e também as que me parecem mais bonitas, mesmo que eles sejam esquisitas para muita gente ou que o significado delas tenha mudado muito, ou até quase se esquecido no tempo. Espero que no mínimo as que forem desconhecidas despertem a sua curiosidade ou se façam entender pelo contexto, e que daquilo que for entendido não sobre e nem falte muito do que eu quis dizer. De uma maneira ou de outra, você entenderá uma corruptela do que eu escrevi. Mas corruptela tem dois gumes. Por um lado ela assume que a palavra, a ideia e a coisa mudam, por outro lado julga a mudança por aquilo que se perdeu, aquilo que se deteriorou, aquilo que se corrompeu, não pelo que se incorporou ou superou, não pelo fato que de que a palavra ou a historinha do viajante astuto e inescrupuloso ainda se faça ouvir e escrever, mesmo que só de vez em quando, é como se a palavra tivesse um significado verdadeiro e ele se tivesse perdido, talvez para sempre. A corruptela é somente algo que deixou de ser, nunca algo que se tornou ou está se tornando, a não ser que seja sempre pior que do que era antes.
Haverá quem diga, por exemplo, que o conjuminar da bisa é uma corruptela do congeminar dos portugueses, mas será mesmo? Ela parecia saber o que estava fazendo, conjuminava coma as coisas que aconteciam uma história qualquer que tirava pronta da cabeça sempre que queria ensinar alguma lição.
Era uma velha dos cabelos longos e lisos que eu só vi negros nas fotos das paredes onde ela posava ao lado do meu bisavô, Sr Honório, Honório de Moraes Pessoa. Eu o conheci bem pouco. Me lembro dele na cama já bem doente e talvez nas festas de família, mas isso eu já não sei se me lembro mesmo ou se inventei uma parte a partir das fotos. Ele foi a primeira pessoa que eu vi defunta, eu era bem pequeno quando ele morreu e escutei muitas histórias sobre ele, posso ter misturado tudo. A família falava com um orgulho mórbido que o meu tataravô tinha catado a minha tataravó a laço, que era índia e uma tia resmungou, quando a bisa já estava bem mais velha e mais voluntariosa do que nunca, que ela era teimosa do jeito que era porque era bugra.
Me lembro de algumas vezes a bisa, a vó, as tias os tios mais velhos se juntarem para contar histórias em dias comuns de semana, um monte de parentes morava perto, jantavam cedo e iam comer melancia ou algum doce na porta da sala da minha avó onde a bisa morou por um tempo, as histórias se sucediam e se repetiam, a maioria da criançada ficava correndo pelo quintal e pela rua, eu corria, mas também parava muito para escutar. A família também se juntava com alguma frequência para alguma tarefa grande ou para fazer comida que precisasse ou pedisse mais gente que a de uma casa só para fazer e comer, se tivesse muito milho para fazer pamonha, muito tomate, muita batata, muita mandioca, se alguém matasse um porco ou comprasse um pernil ou qualquer coisa assim dos terrenos e plantações de perto. Quando era assim eu me lembro que no começo a bisa comandava as coisas, mandava e desmandava e quando ela falava todo mundo escutava, mas que a uma certa altura todo mundo começava a contar histórias. Depois a bisa envelheceu e as filhas assumiram os tachos, raladores e caldeirões, mais ou menos ao mesmo tempo que a televisão substituiu a velha e os velhos no centro da roda e na contação de histórias, quando ainda não tinha muitos televisores todo mundo se reunia na vó para assistir a novela das 8. A bisa até tentava acompanhar, mas por mais que negasse veementemente sempre cochilava logo.

O pilão

Eu disse que algumas histórias que a Bisa contava eram trágicas ou apavorantes, e eram mesmo. Muitas histórias da Bisa e das outras velhas e velhos que eu escutei eram de meter medo, na verdade. Dia desses eu estava me lembrando de algumas com uns amigos e recordei que tinha uma coisa interessante nas histórias que o pessoal contava: Era tudo verdade!
Um tio tinha quebrado a vara de bater feijão nas costas do lobisomem, alguém já tinha visto Saci, Caipora, mula-sem-cabeça, alguém tinha matado uma onça e outro uma maior, quando eles moravam na casa da ferrovia o fantasma de uma velha tinha virado o sofá do meu tio e dado um tapa na cara da minha tia que não acreditou nele, e todo mundo sabia ao menos uma história com o diabo.
A bisa sabia muitas, tinha mania de meter o diabo nas histórias que sabia ou inventava. E o que quer que alguém contasse, se fosse bem contado ninguém podia duvidar facilmente, sobretudo as crianças curiosas. Ai da criança, eu sei bem, que fizesse alguma pergunta torta ou atrevida de um detalhe que parecesse fantástico demais até para ela. Eu disse que a bisa inventava histórias, mas quando ela ou outra pessoa velha contavam sempre tinha alguém para confirmar: “Era mesmo, eu estava lá, eu conheci, morava no sítio, morava na vila…”.
Um dia quando minha irmã e eu estávamos tendo um arranca-rabo no quintal a bisa foi interferir, paramos a briga logo e ela começou a contar de dois irmãos que brigavam muito, numa dessas a menina disse ao garoto _ Ah, vá para o diabo que te carregue! De noite – era sempre de noite – o diabo veio, carregou o menino nos ombros e socou no pilão, como sempre as tias confirmaram imediatamente que conheciam as crianças desgraçadas. Eu fiquei apavorado, fiquei uns dias sem chegar perto do pilão e minha irmã e eu talvez não tenhamos brigado na meia-hora seguinte, depois de uma semana ainda apostávamos quem tinha coragem de atravessar o jardim, tocar no pilão e voltar correndo.
O pilão ficava em um canto escuro do jardim, era usado sempre que tinha por exemplo urucum para fazer colorau, pimenta, amendoim para fazer paçoca doce, paçoca de carne-seca, que era uma farofa em que os golpes no pilão incorporavam as gorduras da carne à farinha de milho ou mandioca, café torrado para moer, milho seco pra fazer quirera ou fubá.
Tinha um monte de utensílios que se levava para o quintal para cozinhar quando era muita comida, se fazia um fogão de pedras, às vezes se levava peneiras, raladores feitos de lata-de-óleo, bacias grandes e tabuleiros. Mas tinha muitas receitas que não se poderia fazer no terreiro da casa sem um pilão, ao menos não sem ter muito mais trabalho. Era a ferramenta certa, a tecnologia perfeita para descascar, esbagaçar, esmagar, moer e misturar profundamente algumas coisas. Chamáva-mos de mão do pilão a ferramenta que fazia parte dele, um socador grande que me lembrava um cotonete gigante de madeira que a depender da força física e da habilidade técnica de quem manuseasse despedaçava e esfarelava as coisas mais resistentes que estivessem no bojo.
Assim como a habilidade da velha no ofício de guardadora, criadora e contadora de histórias concorria com os livros e com as outras maneiras de guardá-las fora das cabeças, o pilão tinha concorrentes desde muito tempo, como a mó de pedra na casa da minha avó paterna, por exemplo. Mais tarde o pilão e o moinho giratório também foram substituídos por eletrodomésticos nas casas das avós como em muitos lugares, quando não, as coisas já eram compradas descascadas e moídas, o pilão e a mó cederam o lugar a novas máquinas no trabalho de esmiuçar as coisas, de reduzí-las a migalhas, ao pó, a uma massa fina ou mingau, assim como também a cabeça dos velhos deixou de ser o principal reservatório, nascedouro, adulterador e propagador de ideias e histórias.
O que eu sei é que à medida que eu crescia também acreditava cada vez menos na literalidade das histórias dos tios e tias-avós e da bisa, mas ainda gostava de ouvir. Ela inventava que tinha bichinhos na cabeça que pegou quando carregou lenha na casa do tio Azor ou do tio Sebastião, não tenho certeza, e ai de quem falasse que era mentira ou dissesse que não via nada na cabeça dela. Eu era uma das poucas pessoas que tinham imaginação e paciência para ficar catando os bichinhos invisíveis que causavam a coceira insuportável da qual ela se queixava, e escutando ela contar histórias e resmungar. Um tempo nós moramos na casa da vó, junto com a bisa. Quando eu chegava da escola pedia a bênção, almoçava e dava uma volta pela casa, em algum momento ela me via de bobeira, coçava a cabeça e falava “dá uma olhadinha aqui pra mim, fio…”, E contava a história da lenha podre.
Ela soltava o coque que era mantido enrolado com uma presílha perolada grande e começava a dizer por onde começar ou continuar a procurar os bichinhos, eu procurava e às vezes dizia que tinha achado alguma coisa, matava os animálculos imaginários na unha e de vez em quando mostrava para ela o tamanho de algum, ela confirmava impressionada e dizia para procurar em outra parte dos cabelos. Ela contava histórias e resmungava da vida, eu escutava tudo enquanto ia repartindo as mechas brancas às vezes meio amareladas aqui e ali e olhando com atenção, parte de mim até achava que talvez tivesse mesmo algum bichinho e que eu é que não estava vendo, eu às vezes achava que tinha visto um, mas logo se escondia atrás de um fio de cabelo que se movia, eles poderiam ser muito menores que a espessura de um fio de cabelo, qualquer cisco que eu achasse mostrava como prova. Às vezes eu realmente não via nada, e pensava que talvez fossem muito pequeninos, ou eu realmente não estivesse olhando direito, como ela dizia a quem duvidasse que eles estavam lá, ela podia sentí-los caminhar. Hoje eu não tenho dúvidas de que no fundo a velha só queria ouvidos e cafuné.
Acho também que as lorotas da família eram um acordo igual ao que eu tinha com a bisa, todo mundo ali dizia que via os bichinhos de lenha dos outros.

O forno

A coisa da qual a bisa mais resmungava era de não ter mais casa. Dizia que desde algum tempo depois que o velho tinha morrido vivia jogada da casa de uma filha para a casa da outra. Quando os filhos se reuniram para arrumar uma casa pra ela perto deles, ela quis que tivesse tudo o que a casa dela sempre teve. Precisava de um poço, um pilão e um forno a lenha. Eu me lembrava vagamente da velha casa da bisa, inclusive do poço que me rendeu alguns pesadelos e do pilão que depois tinha ido para a casa da vó junto com a bisa. A casa nova não tinha poço e nem podia ter porque o bairro já estava cheio de fossas, minha mãe encomendou para a bisa o feitio de um novo pilão a um velho nosso vizinho, e assim foi feito, e do forno ela fez questão. Precisava de um daqueles fornos arredondados que me lembrava uma casa de cupins desses que dão no pasto. Queria fazer pão, e o pão no forno a gás nunca ficava igual. Insistiu com meus tios e não sei mais com quem para que fossem fazer o forno para ela, um neto começou, fez a base de madeira e não foi terminar, isso deve ter deixado a velha mais irritada ainda. Ela amassou o barro e empilhou os tijolos com a ajuda de uma das netas e a primeira fornada de pães embrulhou em uma toalha e foi levar para os meus tios, espalhou os pães na mesa e falou que tinha feito no forno que eles não foram fazer para ela, era birrenta. Tudo nas minhas lembranças da época tende a parecer muito grande, o forno e os pães mesmo parecem enormes, assim como as caras desconcertadas e envergonhadas dos meus tios.
Eu não sei de verdade o que a bisa achava que uma conversa tinha que ter para que nela se devesse botar farinha, mas me lembro muito bem do cheiro, da textura e do gosto delicioso dos pães. No mesmo forno ela chegou a assar broas, biscoitos e brevidades cujo sabor e maciez eu nunca mais consegui encontrar parecidos com os dela, mas os sabores agora só existem minha cabeça, mais ou menos como os bichinhos de lenha só existiam na cabeça dela mediante um acordo não-falado de cumplicidade.
A bisa sabia o que era necessário para que uma massa crescesse. Talvez fosse disso que se tratasse, talvez não se devesse desperdiçar a farinha com uma mistura que não poderia crescer, que não tivesse um bom fermento e não viraria um pão daqueles grandes, saborosos e macios.
Ela usou o forno por um tempo, mas logo voltou a ser mudada para a casa de uma filha e depois para outra noutra cidade quando já não podia mesmo ficar sozinha, se esquecia das coisas. Eu cheguei a passar um dia na frente da nova casa antiga da bisa e ver que o forno estava arruinado, a chuva e o vento derreteram, lavaram e carregaram o barro, os tijolos desmoronaram uns sobre os outros. Depois a bisa começou a esquecer-se também das pessoas e das histórias, ao menos não conseguia mais contá-las. Sempre que chegava uma visita alguém iria torturar carinhosamente a velha perguntando “lembra dele, vó?” “Sabe quem é essa?”. Na última vez que a visitei ela ainda me reconhecia: _Esse eu conheço, é o filho do Gabriel e da Landinha.

A sustança

Provavelmente até agora eu fui bem displicente no uso de algumas palavras. Até prestei atenção nelas, mas deixei-as correrem soltas. Mas quero que você saiba que o que estamos fazendo aqui para entender algumas histórias e palavras é um jogo cujas regras mudam entre as jogadas. Corruptela, velha, conjuminar… Eu estou usando as palavras também pelo gosto delas, então pode ser que no caminho cometa algum erro ou alguma poesia, e é dificílimo diferenciar um da outra.
Mas espero que você e eu possamos chegar realmente a algum acordo sobre a sustança, mesmo que temporário. Até para eu poder te explicar direito que diabos eu acho que isso tem a ver com blog na internet.
Pode ser que a sustança da bisa fosse uma corruptela da substância das ciências. Como eu disse, eu não sei o que se passava na cabeça da velha quando ela falava isso, se era talvez porque alguma conversa não tivesse fermento para crescer como os pães dela ou não tivesse o que quer que fosse necessário para que a comida fizesse bem à saúde.
Saúde, eu acredito que para a minha avó significava principalmente ficar forte para ter força física mesmo, para trabalhar e para não adoecer a toa, para ficar viçoso e corado, engordar e crescer. Isso a julgar pelos critérios pelos quais ela e as outras mulheres dessa geração da família e também um pouco das posteriores – inclusive com certeza minha mãe – usam para dizer se parecemos saudáveis quando nos vêem.
Talvez a palavra sustança tenha se tornado mais comum, eu a ouvi outras vezes geralmente de outras velhas, como minha avó paterna. O que quer que fosse isso era algo que a comida tinha que ter para ser realmente boa. Mas seria uma coisa invisível como bichinhos de lenha em cabelos de velhas? Ou uma coisa igualmente misteriosa, como o pó que a bisa às vezes fingia tirar da lapela do vestido e jogava uma pitada na panela como se fosse um ingrediente secreto?
Talvez não. Acho que tinha a ver com esses efeitos na saúde que se podia sentir e ver com os olhos mesmo, a comida com sustança era a comida que alimenta, que sustenta, permite ter sustentação, afinal “saco vazio não pára em pé”, e aí tinha alguma coisa que ela precisava ter certeza de que estava lá na vasilha para que valesse a pena engrossar com alguma farinha. Assim como sabia que os pães e bolos não cresceriam se ela não colocasse fermento, o caldo só teria sustança se tivesse ali legumes, folhas, raízes, carnes, temperos… Provavelmente era isso. Mas a velha sabia que essas coisas não eram sustança, a sustança era alguma coisa que estava nelas, ou que delas surgia quando elas se batiam, misturavam e cozinhavam juntas.
Se for assim, a sustança das velhas e as substâncias dos cientistas podem ter mesmo algo mais a ver uma com a outra além de uma palavra ser derivada da outra. Vejamos.
Se você for ao laboratório de química ou de um boticário, farmacêutica ou bióloga, geralmente vai encontrar em algum lugar das bancadas e prateleiras um almofariz. É uma cumbuca pequena de vidro, cerâmica ou metal que acompanha um pistilo, que um socador e misturador como a mão do pilão. Naquela tijelinha a pessoa pode reduzir as coisas a partes minúsculas, coloca comprimidos, mistura pós e líquidos que tira de frascos em quantidades pesadas, medidas e calculadas, partes de pedras, plantas ou bichos, ou coisas realmente esquisitas, e esmaga tudo.
Geralmente ao fazer isso se pode saber se com essas partes diferentes se pode criar uma mistura homogênea, ou se pelo contrário elas não se misturam bem, se pode observar como as coisas reagem entre si, o que elas se tornam depois, se pode pegar a mistura resultante e dissolver, diluir, coar, filtrar, decantar, desidratar, cozinhar, coagular, destilar, peneirar, fundir, cristalizar, triturar de novo.
Às misturas homogêneas entre duas ou mais substâncias, os químicos que as congeminam e analisam chamam de soluções. As substâncias são formadas de átomos e moléculas, se os bichinhos de lenha tinham um tamanho igual à espessura de um fio de cabelo então uma molécula de DNA seria 35 mil vezes menor que ela, e um átomo de hidrogênio seria 1,4 milhão de vezes menor. Com certeza os olhos poderosos da minha bisa, capazes de ver bichinhos de lenha não conseguiriam enxergar a sustança sendo criada dentro do pilão. A essas partes formadas de átomos ou moléculas semelhantes umas às outras, realmente muito menores que bichinhos de lenha podre, eles costumam chamar de substâncias.
Então elas estão lá! É possível observar e medir as reações entre elas, observá-las com microscópios poderosos para saber como as coisas mudam, crescem, nutrem, nascem, morrem, brilham, queimam, derretem, evaporam, se solidificam e assim por diante. A ciência delimita o campo das ideias que merecem sua atenção por parecerem corresponder à realidade de acordo com os seus próprios critérios e instrumentos, frequentemente encontra o que está procurando e muito mais raramente até o que não está. Mas é preciso sempre esmiuçar essas ideias da ciência ou olhar muito de perto as suas partes menores e aparentemente mais simples e as relações sempre complexas entre elas também, ou apenas acreditar na bisa e nas cientistas.
A bisa e as outras velhas realmente não sabiam o que era essa coisa que tornava uma comida nutritiva e que fazia as massas multiplicarem de tamanho, mas aprenderam a colocar e criar esses efeitos em seus pratos, caso contrário a maioria de nós não estaria aqui. A bisa aprendeu também que não é em qualquer ideia que se deve investir tempo e esforço, assim como os cientistas. Claro que se pode questionar os seus critérios para separar umas ideias das outras, mas também se deve questionar os deles, não se pode confiar na substância de umas ou na sustança das outras sem algum tipo de observação dos seus efeitos no tempo, e para poder entendê-las e manuseá-las parece mesmo necessário reduzí-las às suas menores partes para experimentar, entender, promover e aproveitar suas misturas.
A esse processo todo de reduzir uma coisa, uma palavra ou uma ideia às suas menores partes, às suas substâncias e às relações entre suas quantidades e qualidades e observar as suas soluções, podemos chamar de análise.
Esse não é o trabalho da bisa. A bisa soca o seu pilão e não quer saber de analisar a sustança nem de escutar as ideias de crianças, mas ela sabe o que é sempre necessário para que a massa cresça e o que é sempre necessário para nutrir.
Ambas, a bisa e as cientistas irão usar seus conhecimentos, suas técnicas, métodos e habilidades, sua força e o poder das suas ferramentas para transformar umas coisas em outras.
É esse poder que eu espero que nós possamos aprender a produzir em nosso pilão.

Pilão de ideias

Uma vez eu passei perto de um terreno no caminho de volta da escola onde tinham crescido muitos cravos cor de laranja. Achei aquilo muito bonito, apanhei um monte, fiz um maço e levei para casa. Quando cheguei não sabia exatamente o que fazer com aquilo e comecei a distribuir para as minhas tias, minha avó, e a bisa. Todo mundo gostou, mas a bisa ficou possessa e ralhou comigo como se eu tivesse feito a maior das ofensas, levando cravos-de-defunto, ela não estava morrendo. Eu não sei se fui eu que não consegui fazer a homenagem certa para a bisa na época, ou se foi por causa dessa problema dela de não querer dar atenção para as conversas das crianças.
De qualquer maneira, agora que eu cresci e sou também quase um velho peço licença à bisa para apresentar o Pilão de Ideias. O nome é baseado nos poderes do seu pilão e nos pilões de outras velhas e velhos que eu conheci pelo caminho, assim como nos almofarizes e outras ferramentas de cientistas e na análise rigorosa das ideias que é comum na boa filosofia.
Mais do que analisar as ideias, argumentos e acontecimentos, mais do que ir às raízes das coisas, mais do que entendê-las de perto, espero que nós possamos criar condições para transformá-las para criar novas misturas ricas e capazes de criar vida.
O objetivo é que o Pilão de Ideias seja uma ferramenta para o debate crítico e radical de ideias de ciência, tecnologia e filosofia, questionando tudo com a curiosidade de crianças sem se contentar com qualquer resposta e investigando até às miudezas mesmo os argumentos mais bem estabelecidos pelas tradições. Vamos ver quais deles ainda merecem que a gente bote farinha.

Este é o primeiro artigo da coluna Conjuminando filosofia. Eu vou escrever às segundas-feiras eu vou discutir conceitos filosóficos a partir das minhas lembranças confusas sobre figuras e situações pitorescas da vida.


Notas:
“conjuminar e congeminar”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/conjuminar. …/congeminar.

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